continuação
De repente,
julgou ouvir ruído no celeiro. Assoprou a vela, muito depressa, e enfiou-se
debaixo do cobertor. Depois adormeceu. Enquanto dormia, pareceu-lhe que uma
porta se abria devagarinho, e que uma sombra entrava na água-furtada. Arriscou
um olhar fora dos cobertores, para ver o que lhe mostraria a luz do luar que
inundava o quarto.
Estaria sonhando? Percebeu que a sombra
era um homem, vestido como esses emigrados que ela via passar pelas ruas da
aldeia, quando os levavam presos para Saint-Malo, e ouviu uma voz meiga que
dizia:
— Não tenhas medo, minha pequenina, não
tenhas medo!
Solange não tinha medo. Sentiu
afastarem-lhe com cuidado os caracóis que lhe cobriam a testa. Um raio de luar
atravessava a janela sem cortinas e batia em cheio na cama. O homem que entrara
contemplava-a:
— Como estás bonita, minha Solange! E
crescida, e forte!
Não se cansava de olhar para ela. E de
repente tomou-a nos braços, apertou-a desesperadamente ao peito e cobriu-a de
beijos. A menina já não sabia se estava acordada ou sonhando, mas pensou de
repente que, se o pai fosse vivo e estivesse ali, diria aquelas coisas, e
seriam assim os seus afagos, aquele abraço, aqueles beijos... Pareceu-lhe que o
homem se ajoelhava à beira da cama, julgou ouvi-lo soluçar, aninhou-se-lhe nos
braços e tornou a adormecer, inundada de felicidade.
De manhãzinha, quando abriu os olhos,
custou-lhe ordenar as suas recordações. Mas depressa recuperou a consciência da
realidade: não havia dúvida, tinha sido tudo um sonho. O quarto estava vazio, e
a porta do celeiro fechada. No andar de baixo, ouvia como de costume o passo
pesado da tia Rouault, nas suas voltas da manhã. Solange sentou-se na cama, e
de repente soltou um grito de alegria. Sobre os tamanquinhos, acabava de ver,
no esplendor de um vestido verde claro, uma grande boneca majestosa e
sorridente, uma boneca vestida como uma "lady", com lindos caracóis
sedosos a emoldurar as faces de esmalte, um xale de renda cruzado no peito e
sapatinhos de marroquim com fivelas de prata reluzentes.
A criança caiu de joelhos em frente da
"senhora", e batizou-a logo com o nome de Yvonne. Vestiu-se num abrir
e fechar de olhos, e levando a "filha" nos braços, desceu à cozinha.
A tia Rouault, ao vê-la aparecer com aquele brinquedo maravilhoso, que excedia
tudo quanto a sua imaginação podia conceber, exclamou, estupefata:
— Santo Nome de Deus! Quem te deu essa
boneca, Solange?
— Foi o Menino Jesus... — respondeu a
menina, com toda a simplicidade.
A bretã ficou de boca aberta. Embora fosse
muito crente, aquele milagre, ainda assim, parecia-lhe ultrapassar os limites
do poder divino. Mas a evidência era esmagadora. Ela bem sabia que ninguém
teria podido comprar em Ploubalay semelhante maravilha, nem mesmo em Matignon,
nem sequer em Saint-Malo ou em
Rennes. O prodígio encheu-a de respeito. Examinou, sem quase
se atrever a tocar-lhe, a "senhora" que Solange lhe estendeu
triunfalmente. Depois chamou o marido:
— Venha ver, Rouault! Venha ver o que o
Menino Jesus trouxe para a nossa menina!
O espanto de Rouault não foi tão grande.
Era uma alma simples, e nada percebia de sedas e enfeites. Mas já as vizinhas
acodiam, e falavam todas ao mesmo tempo, pondo as mãos em sinal de admiração.
Algumas curvavam-se ingenuamente ante o prodígio indiscutível. Outras, mais
céticas, ficavam desnorteadas, incapazes de encontrar explicação satisfatória.
Solange, essa, importava-se pouco com o pasmo delas. Embalava Yvonne,
abraçava-a com cuidado, mal ousando aflorar com os lábios os caracóis loiros,
as faces lustrosas da sua "filha". Levou-a à janela e mostrou-lhe a
estreita perspectiva da rua direita de Ploubalay. Depois, como a tia Rouault,
voltando às coisas práticas, a mandasse ao outro extremo da aldeia, para
comprar favas, saiu radiante, levando a boneca ao colo.
O grande acontecimento já era sabido em
metade da aldeia. As mulheres vinham às portas, para ver. Solange passava,
orgulhosa e grave, compenetrada da sua importância. Quando passou em frente da
igreja, onde o sargento Metzger como de costume estava sentado na sua cadeira,
nem pensou em se desviar, como das outras vezes. Que perigo podia ameaçá-la num
dia como aquele? A sua felicidade interior era tão perfeita, que não tinha medo
de nada nem de ninguém; e quando o militar a chamou, perguntando-lhe o que
tinha consigo, parou com desenvoltura e respondeu, aproximando-se dele:
— É uma boneca.
— Que linda boneca! Onde é que a
arranjaste, menina?
— Senhor sargento, foi o Menino Jesus que
a trouxe para mim.
O jacobino levantou-se, terrível, e afastou
a cadeira com um pontapé.
— O que é que estás dizendo? — gritou.
— É uma boneca que o Menino Jesus me
trouxe, por ser Natal.
Metzger estava espantado com tanta
audácia:
— Imaginas que eu engulo essas?!... Mas,
ante o ar de candura da menina, calou-se, tirou-lhe a boneca e examinou-a
minuciosamente.
— Uma bela dama, sim, senhora! Uma
verdadeira "lady"! E já viste o que está escrito aqui na sola dos
sapatos? "Berkint - London". Então é inglês o teu Menino Jesus?
— Não sei, senhor sargento — respondeu
Solange, pegando outra vez na boneca, mas sentindo estragada toda a alegria.
— Já vamos ver isso — trovejou o sargento.
E voltando-se para o posto, chamou:
— La Cocarde!
Apareceu um cabo.
— Ontem entrou alguém na aldeia?
— Não me parece, meu sargento. Os homens
estiveram sempre alerta. É verdade que ao anoitecer os cães ladraram de maneira
esquisita, mas nós batemos as moitas e não encontramos nada.
— Está bem. Chama os teus homens.
Pôs a patrona ao ombro, afivelou o
cinturão, pegou a espingarda e, à frente da brigada, dirigiu-se para a casa dos
Rouault. Solange, instintivamente angustiada, caminhava ao lado dele, estugando
o passo para o acompanhar, apertando ao coração a linda Yvonne.
Ao chegarem à casa dos Rouault, o sargento
dispôs os seus homens: dois de sentinela em frente da porta e outros no pomar
atrás da casa, que ficou cercada por todos os lados. Depois, seguido pelos
restantes soldados, entrou no jardim da casa levando Solange pela mão.
Sentou-se num banco, pôs a pequena entre os joelhos e disse, num tom mais
humano, certamente para a conquistar:
— Vamos, menina. Conta-me tudo.
Com o coração apertado, um pouco ofegante,
Solange começou em voz muito baixa a sua longa narrativa. Contou o
"sonho", o homem que julgara ver entrar no quarto, a ilusão de ter
sido abraçada e beijada e, de manhã, a surpresa ao dar com a linda boneca. O
sargento não perdia palavra. De repente, voltando-se para os soldados que
assistiam de pé ao interrogatório, ordenou:
— Vamos, meia-volta! Ponham-se lá fora de
sentinela. Façam fogo sobre o primeiro que tentar fugir daqui.
Os homens saíram, e ele ficou só com a
menina.
— Com que então, pequena, dizes que o tal
homem te beijou, que te chamava "minha pequenina"?... Que se pôs de
joelhos ao pé da tua cama e chorou?...
A criança, a cada pergunta, respondia que
sim, com a cabeça, sem querer mentir, mas pressentindo alguma desgraça que a
ameaçava. Metzger não se deu pressa em agir. Pousou as rudes mãos nos ombros de Solange
e, como se falasse consigo mesmo, disse gravemente:
— É claro... Também eu tenho uma filha
assim, lá para os lados de Gerlsheim, na Alsácia... Também tem oito anos... E
também há dois anos bem contados que não a vejo. Para a ver, mesmo estando ela
dormindo, às escuras, para a beijar uma vez que fosse, para a sentir respirar
no meu ombro, com os cabelinhos loiros tocando-me a cara... Sim, para isso
também eu arriscaria a vida sem pensar. Os pais são todos do mesmo jeito, pelo
visto...
Ficou uns instantes embebido em profunda
reflexão. Depois, decidindo-se bruscamente, levantou-se, sacudiu a cabeça, e
voltando-se para a porta que ficara aberta, gritou:
— Venham cá, dois de vocês! Vamos passar
uma busca na barraca.
Solange soltou um grito:
— Senhor Sargento, espere!...
Ao ouvi-lo falar, a menina compreendera
tudo: era o pai que, na calada da noite, afrontando a morte para estar um
instante com ela, deixara o exílio, atravessara o mar, desembarcara nos
rochedos, rastejara sob a ameaça das espingardas até à aldeia... Era o pai que,
pensando no Natal sem brinquedos, que ia passar a sua menina, lhe trouxera a
"senhora". Era o pai que estava lá em cima, escondido no celeiro, e
que os soldados iam prender e levar acorrentado, entre quatro canos de
espingarda...
Então a pobre pequena, com o coração
trespassado, agarrou-se ao sargento e, sacudida dos pés à cabeça por grandes
soluços, suplicou:
— Espere, espere!
— Que mais temos? — perguntou o alsaciano,
retomando a expressão brutal e a voz áspera.
Solange tivera uma inspiração. Para salvar
o pai, daria tudo o que tivesse. Mas só tinha a boneca, e lembrou-se de fazer
um grande sacrifício.
— O senhor sargento tem uma filha, não tem?
Da minha idade... E que não o vê há dois anos...
Metzger respondeu afirmativamente, com a
cabeça.
— Então... talvez... como o senhor não
está em casa, o Menino Jesus se tenha esquecido dela... Olhe, tome a minha
boneca, e mande-a para lá... Eu a dou à sua filha...
O soldado curvou-se de repente para a
menina e fitou-a, com os grandes olhos lacrimejantes. Respirava com ruído, os
lábios tremiam sob o bigode, e o movimento dos músculos nas faces denunciava a
comoção reprimida. Os dois homens que ele chamara se aproximaram.
— Cala-te, menina, e não tenhas medo —
disse em voz baixa o sargento.
Depois, dirigindo-se aos soldados:
— Vamos subir lá no celeiro e revistar
tudo. Armas engatilhadas e olho alerta! Tu, pequena, vais adiante.
Os três militares e a menina subiram a
escada. Chegados à água-furtada, o sargento postou um dos seus homens à entrada
do quarto e o outro perto da janela. Depois dirigiu-se para o celeiro e entrou
sozinho, fechando a porta atrás de si. O coração de Solange batia como doido.
Passados instantes, a porta do celeiro tornou a abrir-se, e Metzger apareceu.
— Está vazio — disse. — Vamos para baixo.
O pássaro bateu asas. Fomos enganados.
Quando se achou sozinho com Solange, na
sala do andar térreo, curvou-se para ela e disse-lhe ao ouvido:
— Fixa bem o que te vou dizer: o
"homem" pode ficar lá em cima esta noite e o dia de amanhã. Dize-lhe
que esteja descansado, que ninguém o incomodará. Que saia na outra noite e vá
daqui a Lancieux, e depois a Saint-Briac, onde pode embarcar. Essa região não
estará vigiada: eu me encarrego de levar os meus homens para outro lado.
Entendeste tudo?
— Sim, senhor sargento.
— Bom, agora a boneca. Fico com ela, e vou
mandá-la para Odília, a minha filha. Fico com ela, porque mais alguém poderia
estranhar, como eu estranhei, que o Menino Jesus andasse trazendo brinquedos da
Inglaterra às meninas como tu. Esta "filha" ainda te daria algum
desgosto. Agora, bico calado! E não te esqueças: por Lancieux e Saint-Briac.
E saiu, reunindo os seus homens, que levou
nessa mesma noite, com os cães policiais, numa expedição de três dias para o
lado de Matignon.
— E aqui têm, meus meninos, a nossa
história: de Yvonne, de Odília e minha — concluiu a marquesa de Flavigny. — O
único drama da nossa existência. Quinze anos depois, quando me casei, fui com o
marquês em passeio à Alsácia. Dirigi-me a Gerlsheim, e perguntei pelo sargento
Metzger e pela sua filha Odília. Estes nomes me ficaram bem gravados na
memória. Encontrei o velho soldado, na sua plantação de lúpulo. Passara à
reserva, depois de ter sido condecorado em Austerlitz pelas mãos do Imperador.
Muitas vezes contara a história da pequena Solange à filha, que tinha
conservado preciosamente a "senhora". Quando o sargento morreu, anos
mais tarde, fui buscar Odília para a minha companhia. Ela me trouxe a Yvonne, e
desde então nunca mais nós três nos separamos.
(G. Lenôtre, "Lendas de Natal" -
Verbo, Lisboa, 1966)