segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Madre Francisca de Jesus, fundadora da Companhia da Virgem

 
   Era outubro de 1910
; Francisca voltava com sua mãe de uma viagem ao Brasil, que nunca mais tornaria a ver. Ela não era mais do que um ponto perdido na imensidade do Oceano, mas um ponto que era toda a predileção da Providência. Em pleno mar, Francisca foi convidada por Deus para uma oração mais profunda e começou pouco a pouco a ver claro sua Vocação. Luzes extraordinárias começaram a instrui-la sobre o Sacerdócio, a Hierarquia Eclesiástica, o valor do Santo Sacrifício da Missa. Ela compreendeu que deveria ir a Roma, falar com o Santo Padre sobre a fundação de uma Ordem religiosa que fosse destinada à oração e à imolação pelas intenções do Papa, pela Hierarquia e pelas vocações sacerdotais. Durante o resto da viagem este ideal se foi precisando, completando, esclarecendo, por obra dAquele mesmo que o havia inspirado.
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     Lembremo-nos hoje de outra grande mística brasileira, também ela desconhecida no país em que nasceu. Entretanto, quão bela era sua alma! Procuremos conhece-la e a sua obra que atualmente vive em nossa nação.
     Francisca Carvalho do Rio Negro era a nona filha dos barões do Rio Negro. Nasceu em Petrópolis a 27 de março de 1877, e passou sua primeira infância no Brasil. Sua família passou a residir em Paris quando ela era muito jovem e poucas vezes voltou a sua terra natal. Entretanto, a obra que realizou no exterior haveria de se transportar para o Brasil quando este país mais necessitava de orações e exemplos de dedicação à Santa Igreja.
     Todavia, toda sua existência é uma constante luta para realizar os desígnios de Deus e estes a deixaram perplexa por muito tempo. Adolescente, por um impulso espontâneo fruto da graça, Francisca fez um voto de virgindade perpétua diante de uma imagem de Nossa Senhora de Lourdes. Tempos depois, diante de uma proposta de casamento muito do agrado de seus pais, tem uma atitude de firme recusa. De uma beleza pura, tranquila e firme, pretendentes não faltavam.
     Por 14 anos teve que resistir às pressões de sua família que a queria casada. A este sofrimento era acrescida a incompreensão de seu confessor que considerava nulo o voto feito por ela na adolescência!
    Aos 30 anos, finalmente inteiramente desobrigada por sua família e por seu diretor, estava pronta para atender ao primeiro apelo dAquele a quem ela se consagrara de corpo e alma! Seu diretor obrigou-a a fazer várias experiências, mas todas resultaram infrutíferas, sem que se descobrisse o gênero de vida que Deus queria dela. “Eu queria fazer a vontade divina, custasse o que custasse, era impossível descobri-la!” - havia de escrever mais tarde, nas notas sobre este período de sua vida.
     Após as graças da viagem, sua mãe e seu diretor, quando lhes expôs seus desígnios, mostraram-lhe toda a dificuldade de semelhante pretensão. Mas, desta vez, não quiseram opor-se a nada. Pelo contrário, seu diretor escreveu uma carta de apresentação ao Cardeal Vives y Tuto, que lhe poderia conseguir a almejada audiência com o Santo Padre.
     Em 13 de dezembro de 1910 foi recebida por São Pio X. O grande pontífice, que ilustrou a Igreja pela santidade de sua vida, não tardou em perceber a origem sobrenatural dos ideais de Francisca. Concedeu-lhe várias entrevistas, e acabou por induzi-la a fazer um ensaio de fundação, à qual deu, desde logo, ao Cardeal Pompilli como protetor. Madre Francisca colocou os fundamentos na divisa: “Christo et Ecclesiae”
     Duas jovens também se deixaram seduzir pelo elevado objetivo da imolação pelos interesses da Igreja. Estando prestes a se desencadear a 1ª guerra mundial, Nosso Senhor estabelecia uma conspiração mística de três pobres e frágeis mulheres, escondidas e humildes.
     Em 12 de junho de 1921, o Cardeal Pompilli consagrou a casa que recebeu o nome de ‘Priorado da Virgem’. Nesta ocasião, a baronesa do Rio Negro voltou definitivamente para o Brasil. Se ainda algum laço prendia Francisca a este mundo, certamente era sua mãe. Este último desapegar-se foi-lhe dolorosíssimo. Daí por diante ela estava sozinha em terra estranha, mas também daí por diante a sua vida era Cristo.
     Depois da fundação, a sua vida tornou-se extraordinária, ainda mesmo quando resolvia as questiúnculas engendradas pelos equívocos, pelos mal-entendidos, pelas contradições, com que todas as fundações têm de se defrontar. Ao mesmo passo, voltaram-lhe, com redobrada violência, as penas interiores e sua saúde comprometeu-se ao contrair a terrível moléstia de Basedow. Devido essa doença sofreu séria operação em 1922 e no ano seguinte diante da perspectiva de uma nova operação recebeu uma graça de cura milagrosa por intercessão de São Pio X. Outra intervenção milagrosa se deu graças a intercessão de Santa Teresinha do Menino Jesus, que lhe apareceu.
     Todas essas provações não impediam a fundadora de organizar cuidadosamente a vida interna de seu convento de contemplativas. Mas ela estava arrasada. Certa vez, em 28 de outubro de 1922, pensou sucumbir aos sofrimentos internos e externos que a submergiam. Num último alento, ainda encontrou forças para fazer este supremo oferecimento: “Entretanto, eu quero sofrer convosco, meu Senhor Jesus”. Neste momento, ela viu ao seu Senhor Jesus, a Cruz às costas, seguido por uma turba ululante que lhe disse: “Quem sofreu tanto como Eu? Siga-me, preciso de ti. Recusarás vir?”
     Não, não havia de ser a Madre Francisca de Jesus quem recusaria segui-Lo. Imediatamente Lhe pede perdão, e suplica-Lhe queira infundir um verdadeiro amor. Como lembrança desta graça extraordinária, a Santa Face de Jesus imprimiu-se na parede da cela, como outrora no lenço da Verônica.
     Em fins de 1928, diversas postulantes, em que ela depositava as maiores esperanças, abandonaram o Priorado. Aquele abandono de suas filhas mais queridas atingiu-lhe o fundo da alma, portanto, e despedaçou seu coração afetuoso. Uma voz interior se fez ouvir para a consolar: “Serás sacudida, tu e a tua barca, mas nem tu, nem a tua barca naufragarão”. 
     
Datam da última fase de sua vida os mais belos e inspirados escritos de Madre Francisca, pois que as suas trevas eram iluminadas momentaneamente por luzes vivíssimas, que a mergulhavam num mar de felicidade. Estes escritos são um alimento espiritual de primeira ordem, e aproximam, singularmente, sua autora dos grandes contemplativos que a Igreja produziu.
     Madre Francisca de Jesus entregou a alma ao Criador em 28 de maio de 1932. Dois anos antes ela escrevera a suas filhas: “É preciso amar Nosso Senhor generosamente, até a destruição de si mesmo, o que é absolutamente necessário, se se quer amá-Lo verdadeiramente”.
     Depois de sua morte, grandes prodígios em curas e conversões se realizaram, mediante sua intercessão. Mas maior prodígio foi certamente o fato da Companhia da Virgem vir a perder a casa da Via Tuscolana, 367, e com isso a Companhia mudou-se para o Brasil, para Petrópolis, vindo rezar pelas vocações neste país de clero escasso, berço de sua fundadora.
     A esposa do Embaixador Luiz Guimarães, então representante do Brasil junto à Santa Sé, tomou a iniciativa de promover a instalação da Companhia da Virgem no Brasil. A transferência se fez, conforme documento oficial assinado pelo Visitador Apostólico, Pe. Lázaro d’Arbonne, com data de 20 de setembro de 1937.
     A Congregação se compunha, então, de 12 membros. Saindo de Gênova a sete de outubro, aportam no Rio a 19 do mesmo mês, no ano de 1937. Instalou-se em Petrópolis, tendo como Bispo Dom José Pereira Alves.
     No dia oito de dezembro de 1969 as Irmãs da Companhia da Virgem fizeram a Profissão Monástica segundo a Regra de S. Bento e recebem a Consagração das Virgens. Em 1980, o mosteiro foi elevado a Abadia,
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     Transcrevemos abaixo um texto publicado por Pe. Reginaldo Garrigou-Lagrange, O.P., extraído das anotações da Fundadora:
[...]
     “Minhas queridas filhas, não vos orgulheis nem vos glorieis jamais de vossa virgindade. Temei antes diminuir o brilho dessa angélica virtude que alegra o coração de Deus.
     “Guardamos tesouro mui precioso em vaso de extrema fragilidade.
     “Dai graças a Deus por esse tesouro e acautelai-vos com mil precauções:  sede atentas, prudentes, vigilantes.  Jesus, no entanto, vos deseja atentas sem constrangimento, prudentes sem dureza, vigilantes sem escrúpulos. Encha o vosso coração sincera caridade, e sede por amor fiéis à santa observância; dilate esse amor a vossa alma e uma casta liberdade vos regule os atos. Caminhai com grande amor na presença do Bem-Amado que será vosso Juiz.
     “Suplicai-Lhe guarde Ele próprio o precioso tesouro que vos confiou, e sua doce Mãe, que é vossa Mãe a tantos títulos o guardará também.
     “Conheço as vossas almas e corações; pertencem plenamente a Deus, a seu Cristo, à sua Igreja. É ainda graça muito superior aos vossos méritos; bendizei a Deus muitas vezes, repetindo-Lhe – pura verdade! – que sem Ele nada podeis. A ação de graças será nova graça: de nós, minhas queridas filhas, só temos o pecado...
     “Como poderíamos então – sem estarmos loucas – ter sequer a tentação de nos gloriar dessa preciosa graça da virgindade! Estejamos bem certas de que só a possuímos por mera liberalidade de Deus, cuja misericórdia para conosco é infinita.  Esforcemo-nos por ser dignas, ou antes, o menos indignas possível, de tanto amor e predileção.  Se fordes fiéis, Ele usará para convosco de prodigalidade real, divina. Tão poucos Lhe são verdadeiramente fiéis!
     “O Senhor gostaria que a virgindade fosse virtude comum a todos os homens”, diz São João Crisóstomo, e esse desejo nos é atestado nestas palavras do Apóstolo ou antes de Cristo, que por sua boca fala: “Quisera, diz ele, que todos os homens fossem castos e puros assim como sou”. Deus, porém, é indulgente para conosco; sabe que se o espírito é pronto, a carne é fraca. Não testemunhou esse desejo sob a forma imperiosa do preceito, deixando-nos a liberdade de realizá-lo ou de a ele nos subtrair.
     “Há, no entanto, convites instantes da parte de nosso Deus e esses convites Ele não os dirige do mesmo modo a toda a humanidade...
     “Para com as almas que chama à Sua intimidade, mostra-se insistente, suplicante, e lhes revela com tão grande luz o radioso esplendor da virgindade, que imediatamente elas se apaixonam pela bela virtude, preferindo mil mortes a dela serem privadas.
     “Conheceis todas o apelo do Mestre; vós o sentistes mendigando o vosso amor... e como Tiago e João tudo deixastes para segui-Lo.  Teríeis julgado dar-Lhe alguma coisa? Não, também neste caso vós é que recebestes.
     “Bem pequenina é a nossa parte:  não fechar a porta ao seu Amor: eis tudo.
Sei que a Deus abris completamente a entrada de vosso espírito, de vosso coração, minhas queridas filhas, e quanto o bendigo!
     “Sede generosas! Jamais recueis, o que não seria digno d’Aquele que vos escolheu”.
“Só Deus, hóspede dos corações puros e amigo das almas sem mancha, vos pode elevar pela santa virgindade até à semelhança dos Anjos.
     “No que vos toca, nada Lhe deveis recusar; Ele fará o resto. Há de guardar-vos e abençoar-vos, a fim de que, permanecendo sempre virgens sob as vestes de Santa Maria, Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, vos apliqueis de contínuo a fazer o que é digno de recompensa.
     “Tomai vossas medidas, minhas queridas filhas, para que no grande dia do Juízo tenhais na mão a lâmpada cintilante...
     “Deus não vos faltará e se lhe fordes fiéis sereis daquelas que em companhia de Santa Inez seguirão por toda parte o Cordeiro”.
 
A Abadia em Petrópolis

(“Madre Francisca de Jesus”, de Reginaldo Garrigou-Lagrange, Tip. Beneditina Santa Maria, págs. 127/135)

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