[...] Passando por Caxambu, tive minha
atenção voltada para vários estabelecimentos comerciais com um nome ao mesmo
tempo antigo e popular, mas com o charme do Brasil real, do Brasil verdadeiro,
bem diferente daquele Brasil falseado apresentado pelas novelas de TV.
Satisfazendo minha curiosidade, perguntei
ao proprietário da lanchonete Nhá Chica
a razão de tal nome. Com calma do montanhês, falou-me longamente a respeito da
personagem, cuja vida transcorreu, quase toda ela, na cidade de Baependi, a
cinco quilômetros daquela conhecida estância mineira, renomada por suas águas
medicinais.
Tirou da gaveta um pequeno livro
que trazia a biografia de Francisca Paula de Jesus Isabel, de autoria de Helena
Ferreira Pena. Abriu-o e mostrou-me um soneto – que a diligente autora
aproveitou, à guisa de apresentação ao leitor, na 14a edição de seu livro – dedicado
à conhecida e venerada em toda região, Nhá (forma abreviada de Senhora) Chica
(forma abreviada de Francisca).
Da lavra do Conselheiro João Pedreira do
Couto Ferraz, tais versos, compostos nos idos tempos do Brasil Império – 1873
–, prestam homenagem a Nhá Chica, cujo processo de beatificação foi instaurado
no Vaticano, em 1992 (*).
Mas, afinal, quem foi Nhá Chica? Não se
imagine uma dama da aristocracia, como as houve no Brasil, até muito virtuosas.
Nhá Chica não foi nem pretendeu ser uma delas, mas sim uma moça interiorana
voltada para Deus.
* * *
Nascida em 1810, em São João del Rei (MG),
ainda menina mudou-se com sua mãe para Baependi. Ali, numa modestíssima casa
que ainda se conserva, no cimo de um morro onde se ergue hoje a igreja de Nossa
Senhora da Conceição, por ela construída, viveu virtuosamente e morreu em odor
de santidade no dia 14 de junho de 1895.
Sua certidão de Batismo fala-nos
claramente de sua origem: “Aos vinte e seis de abril de mil oitocentos e dez,
na Capela de Santo Antônio do Rio das Mortes Pequeno, filial desta Matriz de
São João del Rei, de licença, o Reverendo Joaquim José Alves batizou e pôs os
santos óleos a FRANCISCA, filha natural de Isabel Maria. Foram padrinhos,
Ângelo Alves e Francisco Maria Rodrigues. O coadjutor Manuel Antônio de
Castro”.
Com efeito, por uma pintura, na qual ela é
retratada e que se conserva na capelinha de sua casa, percebem-se claramente os
traços de mestiça, tão frequentes em nosso Brasil real. Como afirmou o Conde
Affonso Celso, os negros que vieram para o Brasil mostraram-se dignos de
consideração por seus sentimentos afetivos, por sua resignação, coragem e
laboriosidade. São dignos, pois, de nossa gratidão.
Segundo sua biógrafa, Nhá Chica era
portadora de nobre missão: “Para todos tinha uma palavra de conforto e a
promessa de uma oração”. Sua companhia diuturna era uma pequena imagem de Nossa
Senhora da Conceição, em tosco oratório, ainda hoje venerada na igreja,
conhecida na cidade como igreja da Nhá Chica. Diante da bela imagem esculpida
por hábeis mãos de artista em cuja alma vicejava a fé, pude rezar a oração
predileta de Nhá Chica, aliás, umas das mais belas preces compostas nos dois
mil anos de cristianismo: a Salve Rainha.
Um fato narrado por Helena Ferreira Pena
descreve o perfil espiritual dessa alma de eleição. Certo dia, Nhá Chica
recebeu manifestação da Mãe de Deus mediante a qual pedia que Lhe fizesse uma
capela. Como isso requeria muito dinheiro, saiu Nhá Chica pelas vizinhanças em
busca de auxílio, que não lhe faltou.
Providenciou logo os adobes (tijolo cru).
Quando havia certa quantidade pronta desse material de construção, recebeu Nhá
Chica ordem de Nossa Senhora para dar início à edificação. Contratou então um
oficial de pedreiro que pôs mãos à obra. Encontrando-se os serviços já em certo
estágio, o oficial notou que iria faltar material e disse-lhe: - “Nhá Chica, os adobes não vão chegar!” Respondeu
ela: “Nossa Senhora é quem sabe”. O
pedreiro continuou o serviço e, ao terminar, não faltou e nem sobrou um só
pedaço de adobe.
Fatos como esse deram-se ao longo de toda
construção até o seu término. Mas Nossa Senhora queria mais alguma coisa.
Manifestou a sua serva seu desejo: “Queria
um órgão para a igreja”. Nhá Chica, porém, na sua incultura, não sabia o
que era aquilo. Foi consultar o vigário local, Mons. Marcos Pereira Gomes
Nogueira, sobre o que era o órgão que Nossa Senhora desejava para a capela.
Segundo vai narrando sua biógrafa, Mons.
Marcos lhe disse: “Órgão é um instrumento
até muito bonito que toca nas igrejas, mas para isso precisa muito dinheiro!”...
- “Mas Nossa Senhora queria. Na Rua São
José, casa 73, no Rio de Janeiro, chegou um assim”, disse ela.
Mal Nhá Chica manifestara o desejo de
Nossa Senhora, as esmolas começaram a afluir abundantes às suas mãos. Foi
encarregado da compra o Sr. Francisco Raposa, competente maestro, que partiu
para o Rio de Janeiro. O órgão foi despachado até Barra do Piraí (RJ) por via
férrea. De lá até Baependi foi levado em carro de boi.
Marcada sua inauguração numa quinta-feira
às 15 h, ela fez tocar o sino, convidando o povo. Começam a chegar os devotos e
a capela ficou lotada. O maestro subiu ao coro e, deslizando suas mãos sobre o
teclado, qual não foi a sua surpresa: não se ouviu uma nota sequer! O que teria
acontecido?
“Com
certeza estragou-se com a viagem em carro de bois, diziam uns”. – “Qual! Com certeza venderam coisa velha
estragada”, diziam outros.
Nhá Chica chorava... De repente, acalma-se
e diz: “Esperem um pouco”. E foi
prostrar-se aos pés da Virgem, sua Sinhá.
O povo esperava ansioso. Ela voltou serena
e sentenciou: - “Podeis voltar para suas
casas, porque o órgão não tocará hoje, mas amanhã às 15 h (sexta-feira)”,
dia da devoção de Nhá Chica. - “Nossa
Senhora quer que entoem a ladainha”.
E assim se fez. No dia seguinte, novamente
o sino soava conclamando os fiéis, que, desta vez, foram em número maior,
movidos pela curiosidade. E às 3 horas da tarde em ponto, o maestro fez ecoar
pela primeira vez por toda a igreja, ao som do órgão, a linda melodia da
ladainha de Nossa Senhora! As lágrimas desciam dos olhos de Nhá Chica, mas
desta vez lágrimas de alegria e felicidade.
Pude ver o órgão, infelizmente em mau
estado de conservação, na casinha onde viveu esta personagem muito brasileira,
carinhosamente chamada de Nhá Chica. Ele não toca mais.
Caro leitor: se a conselho médico ou para
repouso fores a Caxambu, não deixes de percorrer os cinco quilômetros até
Baependi, para ouvir, no silêncio acolhedor daquela modesta casa, os conselhos
que a graça certamente te inspirará na alma. E encontrarás o único repouso
verdadeiro, que é conhecer, amar e servir a Nosso Senhor Jesus Cristo – o
Caminho, a Verdade e a Vida.
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Fontes
de referência:
Por que me ufano do meu país, Affonso Celso, Coleção Páginas Amarelas, Editora
Expressão e Cultura, 1997.
Biografia
de Francisca Paula de Jesus, “Nhá Chica”, Helena Ferreira Pena, Editora O
Lutador, Juiz de Fora, 14a. edição.
Francisca de Paula Jesus Isabel, Nhá
Chica, Mons. José do Patrocínio
Lefort – Editora O Lutador, Juiz de Fora, 4a. edição.
Fonte:
Paulo Henrique Chaves, Catolicismo de janeiro de 1999 (excertos)
(*) Nhá Chica foi beatificada no
dia 4 de maio de 2013 em Baependi MG durante a celebração presidida por Sua
Eminência o Cardeal Angelo Amato,
Prefeito da Congregação das Causas dos Santos.
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