O texto da Passio desta Santa é escrito no
latim do século III, que dará origem ao latim cristão e a seu primeiro cultor,
Tertuliano, que poderia ser o redator final da Passio de Perpétua e seus
companheiros mártires. Aceita ou não esta hipótese, o certo é que o martírio de
Perpétua aparece nos grandes escritos cristãos provenientes daquela província
africana: o próprio Tertuliano (De anima 55, 4), natural de Cartago e contemporâneo
dos quatro mártires (240 d. C.), Santo Agostinho, natural de Tagaste e Bispo de
Hipona (430 d.C.), que escreveu diversos sermões sobre seu martírio (Sermões
280; 281-282). O martírio de Perpétua e companheiros também está testemunhado
por uma inscrição em mármore descoberta em uma basílica cristã nos arredores de
Cartago, no bairro de Mçidfa, que provavelmente se identifica com a Basílica
Maiorum, onde a memória dos mártires era venerada.
O texto da Passio de Perpétua oferece um
elemento singular: a integração, pelo redator final, dos relatos
autobiográficos de Perpetua e Sáturo, escritos de sua própria mão, relativos
aos acontecimentos e visões que precederam seu martírio (respectivamente, §§ iii-x
y xi-xiii).
Assim, não se pode negar a autenticidade dos
fatos narrados na Passio dos mártires de Cartago, encabeçados e liderados por
Vibia Perpétua, mulher bela e culta, de família rica e conhecida em Cartago,
mãe de uma criança de peito. No outro extremo da classe social, encontramos
Felicidade e Revocato, que são irmãos e escravos.
A Passio relata a prisão dos futuros
mártires em Thuburbo Minus, uma cidade a 50 km ao sul de Cartago. A prisão era
uma consequência do edito do imperador Septimio Severo, também originário da
África, que proibia as conversões ao Cristianismo e ao Judaísmo. O fato de um
catequista (Sáturo) e quatro catecúmenos serem detidos longe de Cartago, sua
provável cidade natal (pelo menos a de Perpétua), revela que eles estavam
tentando se esquivar da proibição, instruindo-se fora da capital da província
da África.
Quatro dos detidos, Perpétua, Felicidade,
Revocato e Saturnino, todos eles catecúmenos, recebem o Batismo no quartel de Thuburbo
Minus – não se trata de um cárcere – conjuntamente com Segundo, outro
catecúmeno que morrerá no cárcere decapitado (sendo cidadão romano, o
dispensaram do tormento das feras). Eles tinham sido conduzidos àquele quartel
pelos oficiais e guardas do Estado romano, que os tinham detido.
Os futuros mártires se preparam
espiritualmente para eventuais “sofrimentos da carne”. Perpétua deve resistir
às exortações de seu pai, que quer fazê-la desistir de seu compromisso.
Depois, nos §§ iii-vi da Passio há o
relato da transferência dos prisioneiros para Cartago, onde são colocados no
cárcere proconsular da cidade, inóspita e insalubre, situada provavelmente na
colina de Byrsa.
Perpétua assim a descreve em seu diário: "Nos lançaram no cárcere e eu fiquei
consternada, porque nunca havia estado em um lugar tão escuro. O calor era
insuportável e estávamos em muitas pessoas em um subterrâneo muito estreito. Me
parecia morrer de calor e de asfixia, e sofria por não poder ter junto de mim
meu filhinho, que era tão pequeno e que necessitava muito de mim. O que mais eu
pedia a Deus era que nos concedesse uma coragem muito grande para sermos
capazes de sofrer e lutar por nossa Santa Religião".
Dois diáconos conseguiram que os
prisioneiros fossem tirados temporariamente das masmorras e pudessem receber a
visita de seus familiares. Perpétua pode amamentar seu filho, até que o pai
dela, contrário à sua conversão, não mais lhe levasse a criança. Ela diz em seu
diário: "Desde que tive meu
pequenino junto de mim aquilo não me parecia um cárcere, mas um palácio, e eu
me sentia cheia de alegria. E o menino também recuperou a sua alegria e o seu
vigor". As tias e a avó se encarregaram depois da criança e de sua
educação.
Ali também Perpétua teve a visão da escada
de bronze, em que lhe foi dito que teriam que subir por uma escada cheia de
sofrimentos, mas que no final de dolorosa escalada o Paraíso Eterno os estaria
esperando. Ela narrou a visão que tivera a seus companheiros, e todos se
entusiasmaram e fizeram o propósito de permanecerem firmes na Fé até o fim.
“Poucos dias depois”, os futuros mártires
foram conduzidos ao foro da cidade, onde foram interrogados diante da multidão
pelo procurador Hilariano, que atua como governador exercendo o “direito de
espada”, ditando as penas capitais. Diante da negativa de oferecerem
sacrifícios “pela saúde dos imperadores”, os condenou a morrer atirados “às
feras”. Perpétua, diante da pergunta de Hilariano: “Sois cristã?”, responde:
“Sim, eu sou!”.
Finalmente os prisioneiros, já condenados
à morte, são transladados para outro lugar, a prisão militar, situada no
interior do castrum, ou instalação
castrense, onde ficavam aquarteladas as tropas romanas a serviço do governador.
Perpétua tivera uma visão de Dinócrates,
seu irmão mais novo, que falecera criança ainda, era pagão e sofria no outro mundo. Na prisão militar tem nova
visão de Dinócrates, vendo que este finalmente foi libertado de “seu tormento”
graças às orações de sua irmã, que está a caminho do martírio e que por esta
razão tem um poder de intercessão junto de Deus.
Os condenados são amarrados ao cepo, pelo
menos na primeira noite, à espera de sua execução, que terá lugar entre uns
jogos castrenses convocados “por motivo do aniversário do césar Geta”, filho
mais novo do imperador Septimio Severo, no dia 7 de março de 203, os quais seriam
provavelmente celebrados no anfiteatro da cidade.
Os prisioneiros contam agora com a boa
vontade do suboficial Pudente (que Sáturo, o catequista, vinha tentando converter
à Fé cristã), encarregado das visitas, que facilita a ida de muitas pessoas
para vê-los, entre elas o pai de Perpétua.
Então chegou seu pai (o único da família
que não era cristão) e de joelhos lhe rogava e suplicava que não persistisse em
se chamar cristã, que aceitasse a religião do imperador, que o fizesse por amor
a seu pai e a seu filhinho. Ela se comoveu intensamente, porém terminou
dizendo-lhe: - "Pai, como se chama
essa vasilha que há aí em frente?" "Uma bandeja", respondeu-lhe o pai. - "Pois bem, essa vasilha deve ser chamada de
bandeja, e não de xícara, ou de colher, porque é uma bandeja. E eu, que sou
cristã, não posso ser chamada nem de pagã, nem de nenhuma outra religião,
porque sou cristã e quero ser para sempre". E acrescenta o diário
escrito por Perpétua: "Meu pai era o
único de minha família que não se alegrava porque nós íamos ser mártires por
Cristo".
Um dia antes da execução, Perpétua tem uma
terceira visão: o egípcio derrotado, símbolo do demônio vencido pela
perseverança dos mártires sustentados por Nosso Senhor Jesus Cristo. Sáturo
também tem uma visão, neste caso a do Paraiso, um jardim cheio de flores com uma
casa de luz onde se encontra o trono de Deus, que acolhe os mártires.
A Providência divina se encarrega de que
Segundo tenha uma morte “doce” no cárcere: o decapitam e não passa pelo
tormento das feras. Por sua vez, Felicidade recebe uma graça ao contrário: dá à
luz uma menina e assim pode ser colocada na lista dos que morreriam (segundo o
direito romano, uma grávida não podia ser executada, já que se condenava um
inocente a morrer, o nascituro).
Todos estão prontos para a grande prova. Era
permitido aos condenados à morte fazer uma ceia de despedida. Os condenados
convertem a “ceia livre” da vigília da execução em uma ágape, uma cerimônia
Eucarística: todos recebem a Comunhão, se despedem e se preparam para a morte.
No dia da execução, antes de levá-los à arena
para seu segundo batismo – o de sangue –, os soldados queriam que os homens
entrassem vestidos de sacerdotes de Saturno e as mulheres vestidas de
sacerdotisas de Ceres, deuses dos pagãos. Perpétua, porém se opôs corajosamente
e ninguém quis colocar roupas de religiões falsas, usam túnicas simples.
Já na arena, quando passam diante de
Hilariano, que preside os jogos fazendo as vezes de procônsul, com gestos
lembram-lhe o juízo de Deus que cairá sobre ele. A resposta é imediata: os
cinco mártires devem ser fustigados ao passar entre duas filas de uns
gladiadores presentes ao espetáculo. Estes eram reciarios, gladiadores de nível
mais baixo que vão apetrechados de tridentes e redes, encarregados de combater
contra as feras.
Revocato e Saturnino são atacados por
diversas feras (um leopardo, um javali e um urso, o animal mais temido), e
Sáturo fica ileso por duas vezes. Ele, que havia conseguido converter o suboficial
Pudente, lhe dissera: "Para que
vejas que Cristo sim é Deus, te anuncio que me lançarão a um urso feroz, e essa
fera não me fará nenhum mal". E assim aconteceu: amarraram-no e
aproximaram-no da jaula de um urso muito agressivo. O feroz animal não lhe quis
fazer nenhum mal, mas, pelo contrário, deu uma tremenda mordida no domador que
tratava de fazê-lo se lançar contra o santo diácono. Soltaram então um
leopardo, que destroçou Sáturo.
Quanto a Perpétua e Felicidade, senhora e
serva, queriam que elas saíssem nuas e envoltas nas redes dos reciarios, mas o
público não aceita e elas saem para a arena vestidas com uma simples túnica. As
duas mulheres são atacadas por uma vaca selvagem que as fere gravemente. Perpétua
viu sua amiga ser atingida pelo animal e ainda conseguiu amparar sua irmã de fé
em seus braços e recompor sua roupa estraçalhada, numa demonstração de
respeito, dignidade e amor.
Os pagãos que assistiam ao “espetáculo” se
emocionaram por um curto espaço de tempo, o público se dá por satisfeito com
este tormento e ambas são conduzidas à porta Sanavivaria, a dos salvos. Porém, logo começaram a gritar pedindo a morte
de Perpétua. Elas retornam e devem ser decapitadas. O verdugo que devia matar
Perpétua estava muito nervoso e errou o golpe de espada. Ela deu um grito de
dor, estendeu a cabeça sobre o cepo e indicou com a mão o local preciso onde o
verdugo devia dar-lhe o golpe. Esta mulher valorosa demonstrou com este gesto que
morria mártir por sua própria vontade e com toda generosidade.
Local do martírio |
Estas duas mulheres, uma rica e instruída
e a outra humilde e simples serva, jovens esposas e mães, que na flor da vida
preferiram renunciar às alegrias de um lar, para permanecerem fiéis à religião
de Jesus Cristo, o que nos ensinam? Sacrificaram o que poderia restar-lhes de
vida nesta terra e estão a mais de 17 séculos gozando eternamente no Paraíso.
Fontes: Pasión
de las Santas Perpetua y Felicidad, traducción del latín de alejandra de Riquer
- barcelona 2015 acantilado;
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