Um
desses exemplos me caiu recentemente nas mãos, com a leitura das memórias da Grã-duquesa
Maria Pavlovna da Rússia (*), prima-irmã do último czar Nicolau II. Nascida em
1890, ela viveu durante o auge da crise do Império Russo, passando pela
Primeira Guerra Mundial, e finalmente pelas trágicas convulsões da revolução
comunista. Com muita dificuldade ela conseguiu escapar da Rússia, ao mesmo
tempo que os bolcheviques massacravam os membros da nobreza, inclusive seu
próprio pai.
O período que nos interessa compreende a
grande guerra de 1914-18. Como muitas mulheres da mais alta nobreza, a
grã-duquesa Maria se engajou como voluntária para o serviço de enfermaria das
tropas russas. Exerceu essa função com máximo empenho, durante quase todos os
quatro anos do terrível conflito. No início, como simples auxiliar de
enfermagem, e depois como enfermeira, procurando ocultar sua identidade para
poder trabalhar em qualquer tarefa que lhe fosse requisitada, além de evitar
lisonjas ou louvores. Depois, como seu prestígio e experiência aumentassem,
assumiu o comando de um importante hospital de campanha.
Um pequeno episódio revela como, apesar de
ser prima do imperador, Maria não procurava ostentar sua posição diante das
tropas. No início da guerra, em uma aldeia perto do front de batalha, acabara
de chegar um oficial com a mão ferida. Ao ver o grupo de enfermeiras, das quais
uma era a princesa, ele perguntou:
— Irmãzinhas, não tereis por acaso uma
atadura limpa para trocar o meu curativo?
O oficial não distinguiu a grã-duquesa
entre as enfermeiras. O tratamento que ele usou (irmãzinhas) para se dirigir a
elas se explica pelo fato de as enfermeiras se trajarem à maneira de freiras.
Maria se ofereceu de imediato para trocar o curativo. Enquanto o fazia, outro
militar se aproximou sem que ela percebesse, e perguntou:
— Vossa Alteza Imperial permite que eu a
fotografe?
Confusa, a princesa-enfermeira voltou-se,
reconheceu o militar, e suplicou:
— Não, não faça isso, pelo amor de Deus!
Logo ela notou que a mão ferida da qual
cuidava começou a tremer. O oficial ferido examinava-lhe atentamente o rosto,
abaixando o olhar mais de uma vez, antes que o curativo estivesse concluído. A
princesa permanecia em silêncio.
— Permite-me agora que lhe pergunte quem
é? Indagou o oficial.
Maria não via mais motivos para ocultar
seu nome, e após a revelação, o ferido outra vez lhe perscrutou o rosto em
silêncio, e repentinamente ajoelhou-se na calçada, diante de todos, tomou nas
mãos a barra do vestido da princesa e o osculou. Ela mesma conta que ficou
perturbadíssima; e sem olhar para o oficial, sem despedir-se, fugiu em direção
à farmácia.
Este belo fato revela muito mais do que a
manifestação do respeito e admiração dos russos pelos membros da nobreza.
Também não se trata apenas de um episódio no qual a força militar — a força
física, diríamos — reconhece a superioridade de uma frágil enfermeira. Há no
episódio algo mais revelador da mentalidade do russo, que a própria grã-duquesa
explicita em suas memórias:
“A
atitude dos soldados em relação a nós [enfermeiras] era profundamente tocante.
Dir-se-ia que personificávamos para eles tudo o que lhes era caro, tudo o que
lhes tocava o coração. Com nossas toucas brancas, representávamos de certo modo
esse ente feminino superior, no qual se reúnem as qualidades de mãe e de esposa
completadas pelas de religiosa, concepção especialmente apreciada pelo povo
russo”.
Aí está! A superioridade feminina se
expressa justamente naquilo que ela tem de autêntico. Superioridade essa
invariavelmente rejeitada pelas feministas radicais de hoje.
(*)
Memórias, Maria, grã-duquesa da Rússia, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro,
sem data de publicação.
Fonte:
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