Poucos contrastes há tão frisantes em São
Paulo – onde, entretanto eles não faltam, e de toda ordem – do que entre a
Avenida Tiradentes e o Convento da Luz, com o Museu de Arte Sacra, que lhe
ficam exatamente à margem. Um longo muro, que toma talvez mais de meio
quarteirão, separa os dois mundos. Do lado de fora, a avenida, com seu
movimento emaranhado e ruidoso; muro adentro, quase a mesma atmosfera de há
duzentos anos atrás: a tranquilidade, a meditação, a oração e o bom gosto ali
deitaram raízes e vêm florescendo há tanto tempo, que chegaram a impregnar de
uma vez para sempre a atmosfera de um aroma espiritual sutil e envolvente. [...]
Entra-se no templo. E tudo é sorriso.
Aquele sorriso leve, nobre e superiormente sério que constitui um dos encantos
de nossa arte colonial. Alta cúpula, proporções graciosas, altares e imagens
cheias de mimo e dignidade. A atenção se fixa, por fim, no presbitério.
Do alto do retábulo, uma imagem da
Imaculada Conceição, na penumbra, faz descer de seu nicho sucessivos e ininterruptos
eflúvios de meiguice materna, condescendência e esperança de socorro.
Um pouco aquém um tabernáculo, de linhas
imponentes como se fora um palácio luisquatorzeano. No chão, uma lápide de
mármore assinala dormir ali seu repouso final Santo Antônio de Sant’ana Galvão,
o franciscano fundador da Casa. Como elogio póstumo só estas palavras simples e
supremas: “animam suam in manibus suis
semper tenens, placide obdormivit in Domino die 23 decembris. Anno 1822”. – Ter sempre em mãos a própria alma para a governar
continuamente!... Que elogio! [...]
Ali passam, há mais de 150 anos,
sucessivas gerações de freiras Concepcionistas, apartadas das coisas do mundo,
mas voltadas à oração e à expiação, para que Deus perdoe e regenere este mesmo
mundo. [...]
Fundadora
dessa colmeia de anjos, Madre Helena Maria do Espírito Santo
Santo Antônio de Sant’ana Galvão, morto em
São Paulo no ano de 1822, nos deixou uma “Vida de Madre Helena Maria do
Espírito Santo, mestra e fundadora do Recolhimento da Luz – da cidade de São
Paulo” (cf. “O Convento da Luz em São Paulo, pelo Servo de Deus Frei Antônio de
Sant’Ana Galvão”. Edição do Mosteiro da Luz, 1974). Todos os fatos
contidos no trabalho, conheceu-os o judicioso autor, ou por observação pessoal,
ou por testemunhas de sua inteira confiança.
A história nos faz recuar desde logo para
cerca de 250 anos atrás. Ela se inicia em Apiaí, então região longínqua do
sertão paulista.
“Um homem fidedigno e bom
católico, por nome Francisco de Paiva” – afirma Frei Galvão – divisou uma nuvem
branca com aspecto sobrenatural, que cobria uma casa do lugar. Já era tarde da
noite. E assim, no dia seguinte, foi ele indagar o que se passava. Soube então,
que nascera uma filha do casal, que lhe deu o nome de Helena.
Desde a idade da razão, deu esta prova de
virtudes excepcionais. Entre estas destaco o espírito de penitência, que o
santo frade, justamente maravilhado, assim descreve: “Por espaço de anos
inteiros usou de cilícios sobre a carne, dormia com eles sobre a terra fria,
macerando seu corpo com jejuns quase não interrompidos, rasgando suas carnes
com disciplinas de ferro”. Santo Antônio Galvão, varão prodigiosamente
equilibrado, e por isto mesmo muito entendido em equilíbrio, via nisto virtude.
À tão grandes penitências correspondia
Deus com graças especiais. Certa noite, Helena se embrenhara pelo mato, à
procura de inteira solidão para melhor rezar. Apareceu-lhe aí o terror das
selvas, uma onça pronta a devorá-la. A menina invocou com piedade o nome de
Jesus, e a fera, que não temeria os homens mais bravos e bem armados, desabalou
em apavorada corrida. A cena mereceria ser pintada por Fra Angélico, e oferece matéria
à altura do talento de um Camões.
Acompanhando certa ocasião seus pais nas
longas caminhadas dos paulistas de então – narra ainda Frei Galvão – Helena,
“indo por um caminho em que faltava água de beber, sentiu uma grande sede, e
pedindo a seu Criador lhe diminuísse a sede, pois receava não ter forças para
sofrê-la, foi então que lhe apareceu um mancebo muito formoso com um púcaro de
água e, bebendo ela, nunca mais teve sede em toda a sua vida”. É fácil divisar
nesse mancebo um Anjo do Céu, enviado para dessedentar a piedosa menina, que na
ocasião tinha presumivelmente sete anos.
Não é de admirar que, seguindo por essa
senda espiritual, aos dezessete anos se apresentasse ao Recolhimento de Santa
Teresa, onde se consagrou por anos inteiros, com piedade e esmero, ao ofício de
servente.
Outra visão, mais graciosa ainda que as
anteriores, veio significar-lhe, entretanto, que Deus tinha sobre ela mais
altos desígnios.
Em meio às austeridades que praticava no Recolhimento de Santa Teresa, notáveis aparições favoreciam sua alma. Em uma destas, manifestou-se lhe o Senhor “como Bom Pastor, rodeado de muitas ovelhas, uma nos ombros, outras nos braços, outras procurando subir-lhe pelo corpo, e disse-lhe: ‘Eis aqui estas minhas ovelhas que procuram um aprisco (...) e não encontram, pois vós, podendo, não quereis subministrar-lhes um, fundando um convento em cumprimento de minha vontade’” (“Frei Galvão, bandeirante de Cristo” – Editora Vozes, 1954, p. 53). Com essas palavras de afetuosa intimidade, Nosso Senhor pedia à Irmã Helena que fundasse um convento. Em outros termos, pedia-lhe o impossível.
Em meio às austeridades que praticava no Recolhimento de Santa Teresa, notáveis aparições favoreciam sua alma. Em uma destas, manifestou-se lhe o Senhor “como Bom Pastor, rodeado de muitas ovelhas, uma nos ombros, outras nos braços, outras procurando subir-lhe pelo corpo, e disse-lhe: ‘Eis aqui estas minhas ovelhas que procuram um aprisco (...) e não encontram, pois vós, podendo, não quereis subministrar-lhes um, fundando um convento em cumprimento de minha vontade’” (“Frei Galvão, bandeirante de Cristo” – Editora Vozes, 1954, p. 53). Com essas palavras de afetuosa intimidade, Nosso Senhor pedia à Irmã Helena que fundasse um convento. Em outros termos, pedia-lhe o impossível.
Com efeito, desde 1764, o ímpio Marquês de
Pombal, ministro do Rei D. José I, proibira a fundação de novos conventos em
terras da Coroa portuguesa.
A quem obedecer? Ao poder civil,
perseguidor do estado religioso? Ou à vontade de Deus? – Em princípio, a dúvida
não era possível. Cumpria à Irmã Helena mover-se para a fundação do convento. A
Providência saberia vencer os obstáculos.
Neste sentido, a Irmã Helena, cuja sabedoria era “mais divina do que humana” (ibid.,
p. 54) soube acionar três varões ilustres da São Paulo de então. Um era seu
confessor, o franciscano Frei Antônio de Sant’ana Galvão, já
então merecidamente tido em conta de santo, na cidade. O outro era o
Cônego Antônio de Toledo Lara, Governador do Bispado “sede vacante”, e o
terceiro o Governador da Capitania de São Paulo, o fidalgo D. Luís Antônio de
Sousa Botelho e Mourão.
Para fundar-se um convento contrariamente
à lei vigente, era necessária expressa permissão do Rei. Pedi-la importaria em
provocar uma recusa. Resolveram, então, a irmã Helena e os três egrégios
personagens, que em sua correspondência com o Governo, D. Luís Antônio
simplesmente noticiasse sua intenção de fundar tal convento. Se não ocorresse
expressa proibição, entenderia ele – com santo ardil e coragem – que estava dada uma permissão tácita.
E com isto cumpriria a vontade divina, lançando a fundação.
De fato, o Governo não reagiu. E assim, ao
romper o dia 2 de fevereiro de 1774, um séquito de altos personagens do local
se deteve, no maior segredo, às portas do Recolhimento de Santa Teresa.
Compunham-no o governador da Capitania, o Governador do Bispado,
Frei Galvão e outras personalidades. A Regente do Recolhimento
entregou as Irmãs Helena e Ana da Conceição à ilustre comitiva. As religiosas
entraram em duas cadeirinhas, e lá se foi o cortejo a cavalo, até a capela da
Luz, onde elas iniciaram a vida contemplativa, vindo a professar na Ordem
das Concepcionistas Franciscanas: hábito azul e branco, em louvor da
Imaculada Conceição.
Na mesma Capela da Luz, instituiu o
fidalgo D. Luís Antônio uma Associação
de grande função social, que só se extinguiu por fins do século passado:
a benemérita Irmandade da Nobreza,
destinada a congregar, sob o manto da Virgem as pessoas da aristocracia
paulista.
Estava posta em terra a semente. Cumpria
regá-la. E isto, em termos de Fé,
só se faz pela aceitação generosa da dor.
A pobreza se fez sentir
logo: “Muitas vezes nem água para beber
se tinha; andava-se mastigando alguma coisa azeda para mitigar a sede”.
Havia dias que nada se tinha para comer; e dávamos graças a Deus o dia em que
no jantar podia-se fazer um mingau de tapioca” (ibid., p. 74). A religiosa que
conta isto acrescenta: “e ficávamos muito
alegres e satisfeitas com a Divina Providência, que era toda a nossa consolação
e alegria” (ibid., p. 74). Quanto às celas, eram “muito pequenas, sem soalho e sem forro e ainda poucas. Havia Irmãs que
moravam em celas feitas com taquaras ou com esteiras”. Os calçados eram de
panos velhos. E assim por diante.
Queria Maria Santíssima, padroeira da nova Casa, dar-lhe uma
solidez que desafiasse os séculos. Por isso, dispensou-lhe, além
da pobreza, mais dois tratamentos incomparáveis para as coisas católicas
verdadeiramente duráveis: uma catástrofe e um tufão. A catástrofe foi a morte de Madre Helena, ocorrida em
odor de santidade a 23 de fevereiro de
1775. O tufão foi
a resistência –
sublime por sua energia e por sua humildade – oposta pelas freiras, a uma iníqua ordem de fechar o convento,
proveniente ao mesmo tempo da Coroa e do Bispo.
Haviam cessado em junho de 1775 as funções
de capitão-general do famoso Morgado de Mateus, D. Luís Antônio de Sousa
Botelho e Mourão. Governara este com sabedoria, firmeza e bondade a Capitania
paulista. Sucedeu-lhe imediatamente nas funções Martim Lopes Lobo de Saldanha,
sob cuja férula São Paulo veio a passar oito anos de despotismos e
arbitrariedades.
Executor açodado das tirânicas leis de
perseguição religiosa de Pombal, Martim Lopes não tardou em oficiar ao vice-rei
Marquês do Lavradio, comunicando-lhe que ordenara o fechamento do Convento da
Luz, no qual viviam então dez religiosas.
Tal ordem, o capitão-general a efetivara
por meio do Bispo de São Paulo. Submisso, o Prelado mandou chamar, no dia 29 de
junho, festa de São Pedro, a Frei Galvão, fundador e capelão do pequeno
cenóbio, e lhe intimou a dar início imediatamente à dissolução do Convento. Tão
logo recebida a ordem dada pelo Pastor – ao qual, entretanto, incumbia o dever
de proteger as religiosas, mais do que o de as dispersar – Frei Galvão
dirigiu-se ao mosteiro cuja Capela estava repleta de povo à espera da Missa.
Celebrada esta, Frei Galvão comunicou às religiosas transidas de dor, a
deliberação arbitrária que as fulminava. Que avisassem suas famílias para virem
buscá-las. Dentro de um mês, o Convento teria que cerrar suas portas.
Três religiosas saíram. As outras, porém,
resolveram resistir, dentro dos limites do Direito Canônico, aos intuitos do
Governador, endossados pelo Bispo. Ao pé da letra, a ordem recebida obrigava-as
a fechar o Convento. Não porém a se dispersarem. Fecharam-no. Mas resolveram
continuar vivendo nele clandestinamente.
A resistência parecia absurda, pois,
conhecendo-a o Governador ou o Bispo, tinham o poder – se bem que não o direito
– de desferir contra as religiosas violentas penalidades canônicas e civis.
Ora, como manterem-se na clausura sem receber de fora os víveres e a água
potável, que as freiras tinham escassa? E como tomar contato com gente estranha
ao Convento sem se exporem à delação?
Há porém deliberações absurdas para as
criaturas sem fé, e inteiramente cabíveis para aquelas cuja fé move as
montanhas. As freiras resolveram enfrentar o que humanamente era impossível.
Cerraram portas e janelas. E cortaram todos os contatos com o exterior.
Consumidos os poucos mantimentos de que
dispunha o Convento, as religiosas passaram a viver de umas tais ou quais ervas
que possuíam no quintal. Entrementes, um pé de morangas, que no mesmo quintal
se achava, produziu de modo inteiramente imprevisível uma tal quantidade de
frutas, que as religiosas não conseguiam comê-las todas. Faltando a água,
reuniram-se no coro em dia sereno e claro, e pediram chuva. O céu começou logo
a se cobrir de nuvens. Trovejou. E uma chuva copiosa caiu, enchendo as talhas e
vasilhas que as irmãs haviam exposto para recolhê-la. Repletos os recipientes,
a chuva cessou.
O céu concedeu às “resistentes” socorros
ainda maiores. A alegria inundava as almas das religiosas, que nessa vida
catacumbal recebiam graças assinaladas.
Assim escoou, nessa espécie de santo
“maquis”, todo o mês. E passados mais alguns dias, de repente, fortes golpes
desferidos contra a porta fizeram estremecer a comunidade – Estaria tudo
descoberto? Iriam ser levadas à cadeia? Puseram atenção, e conseguiram ouvir a
voz de Frei Galvão, que as chamava pelos nomes. Abriram. E ele lhes comunicou,
radioso, a notícia: o vice-rei, Marquês do Lavradio, cancelara a ordem do
fechamento e determinara a reabertura do Convento. Comunicava-o carta recém-chegada
do Rio, à qual o Bispo se apressara em anuir. Chegara, para as vitoriosas
freiras, a hora da recompensa, do Te Deum e do Magnificat...
Fonte:
Excertos de artigos do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira na “Folha de São Paulo”:
Não leiam ou leiam meu próximo artigo; A
nuvem, a onça e o mancebo; Catástrofe, tufão e durabilidade; Resistência na São
Paulo colonial.
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