A BONECA
G. Lenôtre
Lembro-me ainda muito bem da velha
marquesa de Flavigny, que conheci quando pequenino, sempre sorridente e serena,
sentada numa antiga poltrona de veludo cor-de-rosa, que fazia realçar os seus
cabelos grisalhos e as grandes toucas de renda enfeitadas com laços.
A seu lado estava quase sempre, numa
cadeira baixa, uma mulher da mesma idade, sorridente como ela, serena como ela.
Chamavam-na "menina Odília". Não era uma criada. Entre as duas
velhinhas parecia existir grande intimidade. Enquanto as duas faziam horrendos
saiotes de malha azul, que distribuíam aos pobres às quintas-feiras de manhã,
com um pedaço de pão e algumas moedas, trocavam em voz baixa, em tom quase
cúmplice, intermináveis confidências.
Em certos dias de grandes arrumações, quando
não tricotavam a malha, as duas amigas iam dar volta aos armários — enormes
bisarmas de carvalho polido, com longos puxadores de cobre e fechaduras altas e
estreitas, recortadas em
arabescos. Abriam caixas, perfumavam a roupa com alfazema,
forravam as prateleiras de belas toalhas bordadas, espanavam e limpavam durante
todo o dia.
Nós, as crianças, tínhamos licença de
assistir àquele espetáculo salutar, com a condição de não mexer em nada.
No fundo de um desses misteriosos
armários, como num santuário, repousava, de pé na sua caixa de vidro, certo
objeto pelo qual as duas senhoras pareciam ter uma espécie de veneração. Era
uma grande boneca vestida à moda antiga, com um vestido de seda desbotado; os
anos tinham-lhe comido quase todo o cabelo; tinha o nariz partido, o verniz
lascado no rosto e nas mãos, e lembro-me de ter visto dela só um sapato,
sapatinho velho, de marroquim estalado, com a fivela de prata enegrecida e um
salto que fora vermelho. Quando chegavam ao imponente brinquedo, a marquesa e a
menina Odília deslocavam-no com mil cuidados, como meninos de coro que pegassem
num relicário; falavam dele em voz receosa, em frases curtas:
— Olha, já lhe caiu mais cabelo... O
vestido está mesmo desfiado. Este dedo solta-se, não demora...
Levantavam
com mil precauções a tampa de vidro, renovavam a pimenta que usavam contra
traça, alisavam a saia, vincando-a delicadamente com a unha... Depois tornavam
a pôr a boneca no seu lugar, de pé na melhor prateleira, como num altar.
— Está bem segura, menina? — perguntava a
marquesa. Era assim que tratava sempre a sua companheira. Esta tratava-a sempre
familiarmente por "Madame Solange", sem nunca lhe dar o título,
falando com um vago sotaque alsaciano, mas sem rudeza e como esbatido pelo
tempo.
Não sabíamos nada sobre a história das
duas senhoras e da boneca. Um dia — era na véspera de Natal de um ano que já
vai muito longe — fomos de repente iniciados no mistério.
Nesse dia, Odília e a marquesa tinham
conversado com mais animação que de costume. Ao fim da tarde, ambas tinham
ficado caladas e recolhidas. Com as mãos caídas no regaço, olhavam-se
enternecidas, e percebia-se que mergulhavam pouco a pouco numa recordação
comum. Quando anoiteceu de todo, Odília acendeu as velas, puxou de um molho de
chaves e abriu o armário. Tiraram a boneca da caixa. Nas suas sedas desbotadas,
sem cabelo, parecia mais velha que as duas senhoras, que a passavam de mão em
mão, com gestos cautelosos, quase ternos. A marquesa a pôs no colo,
endireitou-lhe ao longo do corpo o braço de gesso, que rangeu levemente, como
num gemido. Ficou a olhar para a "senhora", com um sorriso de
carinho.
— Ó menina — disse, como se falasse com a
boneca, — e se eu contasse a nossa história a estes pequenos?
Odília acenou com a cabeça, em sinal de
assentimento. A marquesa mandou-nos sentar à sua volta. Tinha a boneca sentada
nos joelhos, e parecia conversar com ela.
Começou por dizer que, muitos anos antes,
quando era ainda uma menina da nossa idade, a guerra civil devastava a
Bretanha, sua terra natal. Era a época do "grande pavor".
Logo em princípios do ano de 1792, os pais
de Solange tinham emigrado. Com receio dos perigos do exílio, confiaram-na aos
cuidados de uma camponesa de Ploubalay, aldeia vizinha do solar, perto da costa
de Saint-Malo. Estavam convencidos de que a "boa causa" triunfaria, e
de que a sua ausência seria breve.
Mas, quase logo a seguir, a fronteira fora
fechada. Havia leis impiedosas contra os emigrados que tentassem voltar à
França. Uma terrível tempestade sangrenta assolava a Bretanha. Solange,
enquanto durou o vendaval, permaneceu em casa dos aldeães a quem fora entregue,
os Rouault, gente boa mas que vivia receosa, sem notícias dos pais da menina
nem possibilidade de comunicar-se com eles, pois a lei castigava com pena de
morte a menor tentativa de correspondência com os emigrados.
Ploubalay é uma aldeia grande, a três
léguas de Saint-Malo, distante da costa cerca de meia hora. A costa é eriçada
de rochedos avermelhados e protegida por um arquipélago de recifes que o mar
fustiga sem cessar, e que tornam perigosa qualquer tentativa de desembarque. Os
"azuis" ocupavam a aldeia, donde tinham expulsado os
"chouans". O sargento que os comandava era um desses subalternos como
havia muitos no exército revolucionário: patriota rude, inflexível e obstinado.
Era alsaciano, e chamava-se Metzger. Toda a aldeia o temia.
A pequena Solange, sobretudo, punha-se a
tremer, na soleira da porta dos Rouault, mal avistava esse homem terrível de
grandes bigodes, sobrancelhas espessas, olhar oblíquo, voz estrondosa e
pronúncia áspera. Era o seu pesadelo. Quando não andava em reconhecimento com a
brigada, o sargento Metzger estava sempre à porta do posto instalado na igreja
ocupada, a cavalo numa cadeira, fumando obstinadamente o seu cachimbo. Era dali
que vigiava, com ar feroz, as três ruas da aldeia.
Um dia, Solange tinha ido buscar pão para
a tia Rouault, e já vinha de volta, com a pesada broa negra enrolada no
avental, quando viu, no lugar do costume em frente do portal da igreja, o
sargento Metzger, que a seguia de longe com os seus olhos grandes. A pequena
hesitou. Vontade de fugir não lhe faltava, mas teve medo. Enchendo-se de
coragem, começou a andar muito depressa, como qualquer menina que tivesse ido
aos recados com a recomendação de não se demorar. Apertava o passo, rente às
casas, sem voltar a cabeça. Mas quando já julgava ter escapado ao perigo, ouviu
a voz retumbante do sargento:
— Alto aí, pequena!
A criança sentiu o coração parar no peito;
ficou pregada ao chão, gelada de pavor, quase a desfalecer.
— Vem cá... Anda, mais perto! — continuou
a voz.
Solange obedeceu, quase sem saber o que
fazia. Agora estava a dois passos do sargento, e ainda não se atrevera a
levantar os olhos. O homem deixou-a assim estar, sem dizer palavra. Por fim,
num tom que fez estremecer a criança como o súbito estourar de um trovão,
perguntou:
— És uma miúda aristocrata, hein?
A pequena ficou de boca aberta, sem voz,
encomendando-se a Deus. Não tinha compreendido lá muito bem, mas uma coisa
sabia: essa palavra "aristocrata" designava pessoas que eram
condenadas à morte.
— Que idade tens? — perguntou o homem.
Numa pobre vozinha enrouquecida,
balbuciante de terror, respondeu:
—
Oito anos...
Ia acrescentar cortesmente
"senhor"... Mas engoliu a palavra em tempo, por instinto, certa de
que, se a pronunciasse, o soldado a mataria logo ali. Contudo, naquele momento
ele não parecia muito disposto a isso. Murmurou:
— Oito anos... Oito anos! Exatamente...
E logo a seguir acrescentou:
— Estás crescidinha e forte para a idade.
Disse isto num tom tão diferente, que a
menina, surpreendida, levantou os olhos para ele. Era medonho, com o bicórnio
de bicos para os lados, donde pendia uma borla de crina vermelha, a face
tisnada, o cachimbo enegrecido, as mangas agaloadas, os talabartes brancos
cruzados no peito, o grande sabre, as polainas enlameadas. E, pior que tudo, os
olhos, os olhos profundos e penetrantes, que pareciam devorá-la.
— Vamos, põe-te a andar — ordenou.
A menina deu meia-volta e continuou a
correr para casa, ainda trêmula e fria de emoção.
A partir desse dia, começou a sentir-se
espiada pelo sargento. Quando ele passava pela porta dos Rouault, à frente dos
soldados, deitava um olhar para dentro da casa. Se a encontrava nas ruas,
parava e ficava a segui-la com os olhos. E naquela voz áspera, com a pronúncia
diabólica que a fazia arrepiar, chamava-a, entre grandes risadas:
— Ah! Ah! Ah! Pequena...
Por sua vontade, Solange agora nunca saía
de casa. Mas a tia Rouault, calculando que a garota não tornaria a ver os pais,
e não sendo pessoa para dar hospedagem de graça, utilizava-a para fazer os
recados. Assim obrigada a encarar todos os dias aquela sua sombra negra,
Solange acabara por sentir-se condenada à morte. O malvado, pelo visto, só
esperava ocasião para dar cabo dela. E convenceu-se disso certo dia em que,
quando lavava hortaliças no chafariz da praça, o sargento a interpelou bruscamente:
— Como te chamas, menina?
Pensando que chegara a sua hora,
respondeu, resignada:
— Solange.
O sargento exclamou:
— Solange! — ele pronunciava Zôlange.
— Que nome patusco!
Apalpou-lhe os braços e levantou-a do
chão, como se quisesse avaliar-lhe o peso.
— Oito anos! — exclamou. — Oito anos! O
que isto cresce!...
A pequena julgou-se nas mãos de uma fera,
que apreciasse a presa já segura. Com aquela perspectiva, a vida para ela
tornou-se lúgubre.
Dezembro chegara, com as noites sinistras,
os dias sem sol. Não se passava um dia sem que os "azuis" deitassem a
mão a um emigrado. Os exilados passavam tal miséria em Jersey ou Londres,
ansiavam tão ardentemente por voltar à França, que muitos deles não resistiam a
desembarcar. Os "azuis", emboscados em terra, davam-lhes caça nos
rochedos do litoral ou na charneca. Para apanhar as suas presas, tinham
treinado enormes cães, que farejavam o rastro dos infelizes e iam descobri-los
nos fossos por onde se arrastavam durante a noite, ou nos juncais onde passavam
o dia alapardados. Depois, a gente de Ploubalay via-os atravessar a aldeia
acorrentados, com as roupas em farrapos, entre soldados que os levavam a
Saint-Malo ou a Rennes, onde eram fuzilados após julgamento sumário. A lei era
impiedosa e irrevogável: emigrado que apanhassem era homem morto.
Quando chegou a véspera de Natal desse ano
de 1793, ninguém deu mostras de pensar na doce festa de outrora. A igreja
estava fechada, os sinos mudos. A noite caiu, muito enevoada. Ao longo do dia
se tinham ouvido ladrar os cães, do lado da planície Bodard: os
"azuis" deviam ter feito boa caçada...
No sobrado da casa dos Rouault, a pequena
Solange dormia numa água-furtada contígua a um celeiro cheio de escuridão e de
terror, que a fazia arrepiar quando à noite, muito quieta na enxerga, pensava
em todos os misteriosos perigos que podiam estar do outro lado da porta
fechada.
Nessa noite Solange estava muito triste:
enquanto se despia a tiritar, lembrava-se de outras vésperas de Natal, essas
bem alegres, quando ainda estava com os pais, e sentia o coraçãozinho cheio de
afeto e ternura. Como o despertar era radioso, nesses Natais passados! Que
êxtases, diante da chaminé cheia de brinquedos, de gulodices, de embrulhos com
laçarotes de fita! Enquanto pensava em tudo isso, segurava nas mãozinhas
cansadas os tamancos grosseiros que dessa vez não iria pôr na chaminé, sabendo
de antemão que haviam de ficar vazios, como no ano passado... Talvez o Menino
Jesus tivesse medo, e era por isso que já não vinha à França...
continua...
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