Bastidores
de uma História
Intransigência
dos Santos: fidelidade inarredável à sua missão
A firmeza
inquebrantável de Santa Catarina Labouré na defesa do verdadeiro simbolismo da
Medalha Milagrosa
O ciclo anual das festas litúrgicas nos traz, neste
mês de novembro, no dia 27, a comemoração de Nossa Senhora da Medalha
Milagrosa.
Na
oportunidade de cada festa, a Igreja Católica sabe oferecer à consideração dos
fiéis aspectos novos e antigos, que alimentam as almas, renovando nelas a fé, a
esperança e a caridade, e todas as virtudes.
Inspirado no exemplo da Igreja, Catolicismo
apresenta hoje a seus leitores aspectos pouco conhecidos das admiráveis
revelações da Medalha Milagrosa, com que foi favorecida Santa Catarina
Labouré.
Decorridos
163 anos dessas aparições e 117 anos após a morte da santa, não há
inconveniente em revelar, com o devido respeito, a luta de bastidores que a
vidente teve que travar, a fim de que fossem acatadas fielmente as orientações
de Nossa Senhora a respeito dessa Medalha.
Essa
fidelidade e firmeza de Santa Catarina Labouré revelarão a muitos leitores a
verdadeira fisionomia da santidade, que só se pode encontrar na Igreja
Católica.
*
* *
Conforme
os tempos e os lugares, formam-se, em meio ao povo fiel, noções correntes sobre
o que seja a santidade, que nem sempre correspondem à concepção autêntica da
Igreja.
Certa
escola de espiritualidade, que concedia uma prioridade exagerada à doçura, à bondade
e à tolerância em detrimento da fortaleza, da combatividade e das virtudes
austeras, começou a inculcar seus princípios em fins do século XVIII, em plena
fermentação da Revolução Francesa. Ela se opunha assim –– caindo no excesso
oposto –– ao azedume e ao rigorismo moral mal entendido que, por obra do
jansenismo, contaminara incontáveis ambientes católicos, inclusive, alguns
deles, avessos doutrinariamente a essa perniciosa heresia.
Tal
escola encontrou o caldo de cultura propício para a sua proliferação com o
advento do romantismo, logo no início do século XIX, e estendeu suas vagas
dominadoras até quase nossos dias, quando, por seu turno, como fruto para
muitos inesperado do Concílio Vaticano II, uma onda de dessacralização começou
a varrer a Igreja.
Não é
propósito deste artigo tratar nem dos resquícios de jansenismo, hoje quase
extintos nas manifestações da piedade católica, nem, muito menos, do tema ––
entretanto quão atual! –– da tormenta pós-conciliar, que provocou amargurados
comentários do próprio Paulo VI, o Pontífice que levou a termo e promulgou, com
sua autoridade, os documentos do Concílio Vaticano II. (1)
Tomemos,
sim, como objeto de nossas reflexões aquela devoção sentimental e romântica que
caracterizou o tipo de mentalidade acima referido e cujos representantes
sobrevivem como náufragos pairando sobre as águas, na onda dessacralizante e
avassaladora de nossos dias.
Se esses
católicos remanescentes de outras eras –– não tão poucos, ao contrário do que
geralmente se pensa –– souberem corrigir sua visão destorcida da piedade, ainda
poderão colocar em ação os remédios eficazes para enfrentar e vencer os males
da atual crise na Igreja e na Cristandade.
Santa
Catarina Labouré e as admiráveis revelações da Medalha Milagrosa são temas que Catolicismo
tem repetidamente tratado. (2)
A
espiritualidade dulçurosa que desejamos pôr em foco imagina que, exclusivamente
por sua mansidão e sem nenhuma forma de energia e de combatividade, os santos
conquistam os corações, são por todos compreendidos, reconhecidos como tais em
vida e, mal expiram, desde o leito de morte os cercam a veneração e o culto dos
que com eles conviviam.
Com a
vidente da Medalha Milagrosa houve muito disso. Porém, não apenas isso. Os
exemplos de sua vida, e o que se seguiu após sua morte, mostram uma e outra
coisa.
Santa
Catarina Labouré foi contrariada desde os primórdios de sua vida religiosa pelo
Pe. João Maria Aladel [imagem ao lado], confessor do noviciado das
Filhas da Caridade, a quem a santa confiara a mensagem que recebera de Nossa
Senhora.
Prevendo
isto, a Mãe de Deus –– Rainha dos Profetas –– já desde a primeira aparição
orientara a então noviça Catarina Labouré sobre como conduzir-se em relação ao
seu diretor espiritual: “Sereis contrariada. Mas recebereis a graça. Não
tenhais medo… Dizei tudo com confiança e simplicidade. Tende confiança. Não
temais”. (3)
Essa
aparição se deu na noite de 18 para 19 de julho de 1830, festa litúrgica de São
Vicente de Paulo.
Quatro
meses mais tarde, no dia 27 de novembro, Nossa Senhora aparece novamente,
mostrando-lhe o modelo de uma medalha que ela deveria mandar cunhar, e que
seria o veículo de incontáveis graças. A Mãe de Deus a fez “compreender
quanto era agradável rezar a Nossa Senhora, e como Ela era generosa para com as
pessoas que rezassem a Ela. Quantas graças Ela concedia às pessoas que lhas
pedissem, e que alegria ela sentia ao concedê-las”. (4)
O Pe.
Aladel recebeu este novo relato da noviça com indisfarçado mau humor: “Pura
ilusão! Se quereis honrar a Nossa Senhora, imitai as suas virtudes, e
precavei-vos contra a imaginação!”. (5)
Depois
de muitas insistências da vidente, e sobretudo impressionado com o cumprimento
das profecias que ela lhe comunicara sobre a revolução de julho de 1830, o Pe.
Aladel resolveu abrir-se com seu superior (Pe. Etienne), e ambos, na primeira
oportunidade, obtêm do Arcebispo de Paris autorização para cunhar a medalha.
Modificações
introduzidas pelo confessor
Tudo agora
parecia correr sobre os trilhos. Mas as obras de Deus sofrem percalços
inesperados.
Por
conta própria, o Pe. Aladel modificou a efígie da Mãe de Deus que aparece na
Medalha Milagrosa: na visão de Santa Catarina, Nossa Senhora segura com ambas as
mãos um globo de ouro, encimado por uma pequena cruz, que Ela oferece ao Padre
Eterno. Nas mãos, três anéis em cada dedo. Das pedras preciosas desses anéis
partem raios de luz que significam as graças que a Mãe de Deus esparge sobre a
humanidade. Nesta posição das mãos, os raios de luz caem, como é natural, para
baixo e para adiante. O Pe. Aladel houve por bem suprimir o globo das mãos de
Nossa Senhora, e representar as mãos pendentes, de modo que os raios partem da
ponta dos dedos e das palmas das mãos…
Detalhes
sem importância, dirá algum espírito superficial.
A Irmã
Catarina Labouré não pensava assim: na impossibilidade de corrigir a efígie da
medalha batalhou a vida toda para que ao menos fosse feita uma imagem na
atitude verdadeira, e colocada num altar, no local onde Nossa Senhora lhe
aparecera pela primeira vez. O simbolismo da Santíssima Virgem como Rainha do
Universo estaria assim preservado.
“Foi o
martírio de minha vida”
Na
primavera de 1876, sabendo que lhe restava pouco tempo de viela, a Irmã
Catarina, a quem o Pe. Aladel impusera silêncio sobre as aparições, sentiu
necessidade de se abrir com sua superiora, a Irmã Jeanne Dufès [foto ao lado].
Esta ficou perplexa ao tomar conhecimento das modificações introduzidas pelo
Pe. Aladel.
Um globo
nas mãos! Como conciliar isto com a imagem da Medalha Milagrosa? A Irmã Dufès
pensa que a Irmã Catarina está delirando:
—
“Dir-se-á que estais louca!
— “Oh!
não será a primeira vez! O Pe. Aladel me chamava de ‘vespa danada’ [méchante guêpe] quando eu
insistia sobre isso!”. (6)
— “Mas o
que será da Medalha, se isto
se divulgar?
— “Oh! il ne faut pas toucher à la
Médaille!” (“Não se
deve mexer na Medalha”) – retorquiu a santa… (7)
Com
efeito, 45 anos depois de a Medalha ter dado a volta ao mundo, operando
autênticos milagres e outras maravilhas da graça, não era mais oportuno alterar
a forma pela qual se tornara conhecida.
A solução
era pois fazer uma representação complementar, conforme pleiteava Santa
Catarina Labouré.
A Irmã
Dufès, entretanto, insiste:
— “Mas
se o Pe. Aladel recusou, ele teria suas razões…
— “Foi
o martírio de minha vida”, replica a Irmã Labouré, que assim revela a
batalha pertinaz que teve de conduzir para se manter fiel à revelação recebida.
(8)
A Irmã
Dufès pede que ela forneça os detalhes para o trabalho do escultor: os traços
da Santíssima Virgem — orienta a Irmã Catarina não devem ser “nem
muito jovens, nem muito sorridentes, mas de uma gravidade mesclada de tristeza,
a qual desaparecia durante a visão, quando o rosto se iluminava com as
claridades radiosas do amor, sobretudo no momento em que Ela rezava”. (9)
Por fim,
a Virgem do Globo
Feito o
esboço pelo escultor, a Irmã Dufès manda que a Irmã Catarina o vá ver. Ela não
consegue esconder sua decepção. “Não, não é isto!”. A Irmã Dufès a faz
percorrer todas as lojas de imagens sulpicianas [do estilo de Saint-Sulpice]
para tentar descobrir o modelo adequado. Pesquisa inútil.
Algumas semanas depois, a encomenda é
entregue. A Irmã Dufès não a coloca na capela, mas, discretamente, em sua sala
de trabalho, e manda chamar a Irmã Catarina. Esta analisa atentamente. Vários
detalhes de sua descrição foram escrupulosamente atendidos: o globo de ouro
encimado por uma cruz, a serpente esverdeada com manchas amarelas, que Nossa
Senhora esmaga sob os pés. Mas Santa Catarina não manifesta nenhum entusiasmo;
pelo contrário, faz uma careta.
A Irmã
Dufès, um tanto decepcionada com o resultado de sua iniciativa, a admoesta:
— “Não
vos torneis muito difícil. Os artistas desta terra não podem realizar o que
eles não viram”. (10)
Quatro
anos depois da morte de Santa Catarina Labouré, o Pe. Fiat, novo
Superior-geral, manda fazer um modelo ampliado da imagem executada pela Irmã
Dufès e instala-a num altar construído no local indicado pela vidente.
Depois
de várias peripécias, em que a imagem da Virgem do Globo deveu ser retirada
desse altar por determinação da Sagrada Congregação dos Ritos, foi ela
finalmente reentronizada no mesmo altar, após intervenção pessoal de um Bispo
lazarista junto ao Papa Leão XIII.
Fonte: Revista
Catolicismo, nº 515, novembro/1993
Autor: Antonio
Augusto Borelli Machado