segunda-feira, 11 de março de 2019

A última e a mais pobre conversa do convento – 11 de março


O meu sacerdócio e uma desconhecida

O Barão Wilhelm Emmanuel Ketteler (1811-1877)

Todos nós devemos o que somos e a nossa vocação às preces e aos sacrifícios dos outros. No caso do famoso bispo Ketteler, excelente personagem do episcopado alemão do século XIX e figura de destaque entre os fundadores da sociologia católica, a benfeitora foi uma religiosa conversa, a última e a mais pobre freira de seu convento.

     Em 1869 estavam juntos o bispo de uma diocese na Alemanha e seu hóspede, o bispo Ketteler de Mainz. Durante a conversa o bispo diocesano elogiava as tantas obras benéficas de seu hóspede. Mas o bispo Ketteler explicou ao seu interlocutor: “Tudo o que alcancei com a ajuda de Deus, o devo às preces e ao sacrifício de uma pessoa que não conheço. Posso somente dizer que alguém ofereceu a Deus sua vida em sacrifício para mim e graças a isso tornei-me sacerdote”.
     E continuou: “Antes eu não me sentia destinado ao sacerdócio. Eu havia prestado alguns exames na faculdade de direito e desejava fazer uma rápida carreira que me permitisse ter um lugar de prestígio no mundo, ser respeitado e ganhar muito dinheiro. Um evento extraordinário, porém, impediu-me tudo isso e conduziu minha vida em outras direções. Uma noite, enquanto eu estava sozinho no meu quarto, abandonei-me aos meus sonhos de ambição e aos planos para o futuro. Não sei o que me aconteceu, não sei se estava acordado ou não. O que eu via era a realidade ou um sonho? Só uma coisa sei com certeza: vi aquilo que sucessivamente provocou a virada da minha vida. Claro e límpido, Cristo estava por encima de mim numa nuvem de luz e mostrava-me seu Sagrado Coração. Frente a Ele estava uma freira ajoelhada com as mãos erguidas em posição de imploração.
     “Da boca de Jesus ouvi as seguintes palavras: ‘Ela reza ininterruptamente por ti!’. Eu via com clareza a figura da irmã, e sua fisionomia me impressionou de maneira tão forte, que ainda hoje a tenho frente aos meus olhos. Ela me parecia uma simples conversa. Sua roupa era pobre e rude, suas mãos avermelhadas e calosas pelo trabalho pesado. Qualquer coisa tenha sido, um sonho ou não, para mim foi extraordinário pois fui atingido no íntimo e a partir daquele momento resolvi me consagrar inteiramente a Deus no serviço sacerdotal. Recolhi-me num mosteiro para os exercícios espirituais e conversei sobre tudo isso com meu confessor. Comecei os estudos de teologia aos trinta anos. O resto o senhor já conhece. Se agora o senhor acredita que algo de bom foi feito com minha intermediação, saiba de quem é o mérito: daquela irmã que rezou por mim, talvez sem sequer me conhecer. Tenho certeza que por mim rezou e ainda reza em segredo e que sem aquela prece eu não poderia alcançar a meta à qual Deus me destinou”.
     “Tem ideia de quem reza pelo senhor e onde?” perguntou o bispo diocesano. “Não. Posso somente pedir a Deus que a abençoe, se ainda vive, e que lhe devolva mil vezes o que fez por mim”.
A Irmã do Estábulo
     No dia seguinte o bispo Ketteler foi visitar um convento de freiras na cidade próxima e celebrou para elas a Santa Missa na capela. Quando estava prestes a terminar a distribuição da Santa Comunhão, já na última fileira, seu olhar deteve-se sobre uma irmã. Seu rosto empalideceu e ele ficou imóvel, mas logo retomou-se e deu a comunhão à freira que não percebera nada e estava devotadamente ajoelhada. Então concluiu serenamente a liturgia.
     Para o café da manhã chegou ao convento também o bispo diocesano do dia anterior. O bispo Ketteler pediu à madre superiora que lhe apresentasse todas as irmãs e elas chegaram imediatamente. Os dois bispos se aproximaram e Ketteler as cumprimentava observando-as, mas via-se com clareza que não encontrava o que estava procurando. Em voz baixa dirigiu-se à madre superiora: “Estão todas aqui as irmãs?” Ela olhando o grupo respondeu: “Excelência, mandei chamá-las todas, mas de fato falta uma!”. “E porque não veio?” A madre respondeu: “Ela cuida do estábulo, e de maneira tão exemplar que às vezes no seu zelo esquece das outras coisas”.  “Desejo conhecer esta irmã”, disse o bispo.
     Pouco depois a freira chegou. Ele empalideceu e após ter dirigido algumas palavras a todas as freiras pediu para ficar a sós com ela.  “Você me conhece?” perguntou. “Excelência, eu nunca o vi!”. “Mas você rezou e ofereceu boas obras por mim?” queria saber Ketteler. “Não tenho consciência disto, pois não sabia da existência de Vossa Excelência”.
     O bispo ficou alguns instantes imóvel em silêncio, depois continuou com outras perguntas. “Quais devoções você ama mais e pratica com maior frequência?” - “A veneração ao Sagrado Coração”, respondeu a irmã. “Parece que você tem o trabalho mais pesado de todo o convento!” continuou. “Ah não, Excelência! Certamente não posso negar que às vezes me repugna”. “Então o que você faz quando é atormentada pela tentação?” - “Acostumei-me a enfrentar, por amor a Deus, com zelo e alegria todas as tarefas que me custam muito e depois oferecê-las por uma alma no mundo. Será o bom Deus a escolher a quem dar a Sua graça, eu não quero saber. Também ofereço a hora de adoração da noite, das vinte às vinte e uma horas, para essa intenção”.
     “E como teve a ideia de oferecer tudo isso por uma alma?” - “E’ um costume que eu já tinha quando ainda vivia no mundo. Na escola o pároco nos ensinou que devíamos rezar pelos outros como se faz para os próprios parentes. E também acrescentava: ‘Seria necessário rezar muito para aqueles que correm o risco de se perderem para a eternidade. Mas visto que só Deus sabe quem tem mais necessidade, a coisa melhor seria oferecer as orações ao Sagrado Coração de Jesus, confiantes na sua sabedoria e onisciência’. E assim eu fiz, e sempre acreditei que Deus encontra a alma certa”.
Dia do aniversário e dia da conversão
     “Quantos anos você tem?” Perguntou Ketteler. - “Trinta e três anos, Excelência”. O bispo, impressionado, interrompeu-se um instante e depois perguntou: “Quando você nasceu?”  A irmã disse o dia de seu nascimento. O bispo então fez uma exclamação: tratava-se exatamente do dia de sua conversão! Ele a vira exatamente assim, à sua frente como estava naquele momento. “Você não sabe se as suas preces e os seus sacrifícios tiveram sucesso?” - “Não, Excelência”. “E não gostaria de saber?”. - “O bom Deus sabe quando fazemos algo de bom, isso me basta”, foi a simples resposta. O bispo estava abalado: “Então, pelo amor de Deus, continue com essa obra!”. A irmã ajoelhou-se à sua frente e pediu a bênção. O bispo levantou solenemente as mãos e com profunda comoção disse: “Com os meus poderes episcopais, abençoo sua alma, suas mãos e o trabalho que elas cumprem, abençoo suas orações e seus sacrifícios, seu domínio de si e sua obediência. A abençoo principalmente para sua última hora e peço a Deus que a assista com Sua consolação”. - “Amém”, respondeu pacata a irmã e se afastou.
Um Ensinamento para a vida inteira
     O bispo estava abalado em seu íntimo, aproximou-se da janela para olhar para fora, tentando reconquistar seu equilíbrio. Mais tarde despediu-se da madre superiora e voltou à casa de seu amigo e coirmão. E a ele confidenciou: “Agora encontrei aquela à qual devo minha vocação. É a última e a mais pobre conversa do convento. Não poderei nunca agradecer a Deus o bastante pela Sua misericórdia, porque aquela freira reza por mim há quase vinte anos. Deus, porém, já havia aceito sua prece e também tinha previsto que o dia de seu nascimento coincidisse com o dia de minha conversão; depois, Deus acolheu as orações e as boas obras daquela irmã.
     Que ensinamento e que advertência para mim! Se um dia cair na tentação de orgulhar-me pelos eventuais sucessos e pelas minhas obras frente aos homens, devo sempre lembrar que tudo me vem da graça e da oração e do sacrifício de uma pobre serva que está no estábulo de um convento. E se um trabalho insignificante me parecer de pouco valor, devo refletir sobre isto: o que aquela serva faz com humilde obediência a Deus e oferece em sacrifício com domínio de si, tem um valor tão grande perante Deus que suas obras criaram um bispo para a Igreja!”.

*  *  *

Wilhelm M. Von Ketteler, nobreza de sangue e cruz

     O Barão von Ketteler nasceu em 1811 em Harkotten, localidade da Vestefália, e faleceu em Burhausen na Baviera, depois de vinte e sete anos como um dos bispos mais carismáticos de Mogúncia. Foi um dos instauradores do catolicismo social na Alemanha, e seu exemplo se estendeu até a França.
     Estudou teologia na Universidade de Gotinga, em Berlim; em Heidelberg e Munique estudou ainda direito e ciência política. Foi ordenado padre em Münster, em 1º de julho de 1844 e bispo de Mogúncia em 27 de julho de 1850, permanecendo à frente da diocese de 1850 a 1877. Decidiu consagrar a sua vida à causa da liberdade da Igreja em relação ao controle do Estado. Isto fez com que colidisse com o poder civil, atitude que manteve por toda uma vida tempestuosa e agitada. Fundou o seminário de sua diocese.
     Como aristocrata, foi herdeiro das tradições do Ancien Régime, defensor da subsidiariedade da família e das instituições municipais, frente ao protagonismo do Estado, e por isto, como bom tradicionalista, um firme anti-absolutista.
     Como bispo de Mogúncia, foi o paladino do catolicismo social ao observar a mudança profunda da sociedade alemã pela industrialização. A proletarização das classes populares, católicas nessa parte do império prussiano, gerou a imediata sensibilização de seu bispo, obrigado como pastor a proteger a sua grei do liberalismo imperante na Prússia e o nascente socialismo de ideologia ateia.
     Von Ketteler desenvolveu os grandes temas do Cristianismo social, tendo sido apelidado de Bispo Social. A ele é atribuída importante influência nas posições futuras da Igreja manifestadas na encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII. O Papa Bento XVI o menciona na encíclica Deus caritas est como sendo um dos principais pioneiros da Doutrina Social da Igreja ("Deus caritas est" nº.27).
     Fundou as ordens religiosas dos Irmãos e Irmãs da escola, para trabalhar nos estabelecimentos educativos que tinha criado, trabalhou para instituir orfanatos e para resgatar lares. Em 1851 fundou a Congregação das Irmãs da Divina Providência, juntamente com Stephanie Amélia Starkenfels de La Roche..
     Em 1863, em parte, adotou alguns pontos de vista de "Lassalle" e editou o seu "Die Arbeitfrage und das Christenthum".
     Wilhelm von Ketteler defendeu os trabalhadores alemães, atuou reivindicando aumento de salários, férias, redução da carga horária de trabalho e na eliminação do trabalho infantil. Fundou o KAB, Movimento dos trabalhadores católicos.
     Foi um dos principais e mais calorosos opositores da Kulturkampf levada a efeito pelo Príncipe Otto von Bismarck. Esteve sempre muito decidido a consagrar a sua vida à liberdade da Igreja frente ao Estado. Foi em grande parte o instrumento que compeliu aquele homem de Estado a reconsiderar a frase que havia dito "não iremos jamais a Canossa". A sua oposição à Kulturkampf e a Bismarck foi até o ponto de em 1874 proibir aos clérigos da sua diocese de participar das celebrações da Batalha de Sedan e declarar o Reno um "rio católico".

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